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Rimando em seus próprios idiomas e prontos para a retomada

Conheça Kaê Guajajara e Kunumi MC, que com muito talento e autenticidade, cantam sobre a luta indígena

Por Thais Santos
27/11/2020

Jovens e com uma missão ancestral, Kaê Guajajara (26) e Kunumi Mc (19), fazem da música seu grito de guerra para denunciar o genocídio, clamar por demarcação e criticar o modo racista como a sociedade vê os indígenas, que muitas vezes, no imaginário de alguns, não existem mais, muito menos em contexto urbano.

Com muita didática, a arte desses dois vem para descolonizar a mente de quem os ouve, as rimas fortes em guarani do rapper Kunumi, que é da aldeia Krukutu localizada em São Paulo/SP, são como flechas que atravessam o espaço tempo impulsionadas pela forte batida do rap, já as melodias de Kaê, nascida no Maranhão/MA e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro/RJ, transitam e se misturam em diversos ritmos, combinados com sua bela e marcante voz, a cantora é certeira em passar sua mensagem e abalar as estruturas de um sistema preconceituoso.

Na internet, eles veem o número de seguidores e ouvintes de suas páginas e plataformas de streaming aumentar a cada dia, Kunumi tem quase dez mil inscritos em seu canal no Youtube e seu vídeo mais clicado ‘’Xondaro Ka’aguy Reguá (Forrest Warrior)’’ já alcançou cinquenta e três mil visualizações. Kaê Guajajara carrega a marca fiel de quatro mil ouvintes mensais no Spotify, e no Instagram seus seguidores passam dos vinte e cinco mil.

A guerreira que voa alto

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Kaê Guajajara com um cocar de penas na gravação de seu videoclipe “Asas”. Foto: Arquivo Pessoal.

Kaê Guajajara nasceu no Maranhão/MA e teve a terra em que vivia com sua família e seu povo tomada por madeireiros, se mudou com a mãe para a favela da Maré no Rio de Janeiro e viu sua vida se transformar, teve que se habituar na urbanização e enfrentar preconceitos, sempre resistindo com sua cultura. O primeiro contato com a música aconteceu em um projeto dentro da favela da Maré, desde então não parou, hoje com três EPs lançados e um livro publicado, Kaê vê sua luta gerando frutos e sua carreira decolando.

Seu último EP, o íntimo e forte Wiramiri estreou recentemente nas plataformas digitais e o carro chefe do projeto é o single ‘’Asas’’, o clipe da música bombou nas redes e a cantora revelou estar bem feliz com a recepção do público: ‘’Bastante gente gostou, parece que foi uma linguagem universal, conseguir ter um reconhecimento e uma boa resposta é muito gratificante’’.

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Capa do EP Wiramiri de Kaê Guajajara, lançado no dia 27 de setembro de 2020. Crédito da foto: Instagram - @kaeguajajara/Reprodução

Wiramiri tem uma linguagem ampla, trazendo novos ritmos para todos os gostos, com isso, a cantora tem expectativas de que novas pessoas conheçam seu trabalho e tenham interesse em apoia-la como artista independente, já que as gravadoras fazem parte de uma estrutura que ainda é racista, e não dão a oportunidade para cantores indígenas ocuparem esse espaço dentro do mundo da música. Mas isso não é algo que preocupa Kaê, seu principal compromisso é denunciar o genocídio e o ecocídio em suas letras, e acha que em uma gravadora isso poderia ser prejudicado, já que provavelmente tentariam moldá-la para o mercado.

Sendo uma mulher indígena, Kaê enfrentou dificuldades para encontrar autoestima e força para acreditar em si mesma e em seu talento: “É muito difícil enquanto mulher indígena, ter autoestima o suficiente para me expor. Por muito tempo me anulei não acreditando nas coisas que eu fazia, não acreditando que era bom’’, desabafa a jovem que hoje tem uma visão diferente sobre amor próprio e reflete sobre a importância da autoestima em sua luta: “Hoje em dia há uma autoestima percorrendo os corpos indígenas que têm resistido, e são esclarecidos a ponto de lutar pelo seu povo’’, completa.

Sua luta em vários espaços

Kaê atualmente faz parte do grupo de curadores do Edital de Música da marca Natura, já participou de importantes eventos como o Prêmio Sim à Igualdade 2020, realizado pelo canal Multishow, sempre levando sua cultura de forma firme e didática, como em seu livro ‘’Descomplicando com Kaê Guajajara’’ que fala diretamente com não-indígenas em uma linguagem clara, no intuito de alcançar todos, principalmente aqueles que não conhecem nada sobre a causa dos povos originários.

"O livro facilitou muito, minha música já estava alcançando algumas mentes que se abriam para escutar, mas o livro veio de forma mais informativa, se a pessoa que não tem noção de nada quer aprender, ela consegue através dele" explicou a artista. A renda adquirida através do livro é revertida para famílias indígenas carentes.

Para 2021, Kaê espera lançar mais um livro, dessa vez voltado para o público infantil, com versões indígenas de histórias que já conhecemos, mas que foram escritas com valores brancos. A inspiração para o projeto veio de sua filha pequena, o intuito é trazer novas morais e uma visão diferente dos contos infantis, além de representatividade.

Assim como em todos os seus EPs, singles e vídeos, a produção dos livros ocorre juntamente com seu projeto Azuruhu, um coletivo de indígenas em contexto urbano, que Kaê Guajajara fundou juntamente com seu companheiro Kandú Puri. Além do audiovisual, o coletivo vende artesanatos, como explica Kaê: “Antes a gente vendia na cidade, mas por conta da pandemia, agora só vendemos pelo Instagram. Nós fazemos palestras nas escolas, shows e intervenções, sempre ações voltadas para a descolonização, para a formação de consciência de não indígenas a cerca desses assuntos’’.

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Kaê Guajajara com o grafismo de seu povo na pele, na gravação do curta-metragem “Quem é Kaê Guajajara’’, produzido pelo coletivo Azuruhu. Foto: Arquivo Pessoal/Kaê Guajajara.

Mesmo com tanta luta, Kaê ainda encontra espaço em sua arte para falar sobre seus sentimentos, e aproveita para mostrar seu lado romântico em algumas de suas músicas, como a emocionante ‘’Vênus em Câncer’’, mas claro, nunca deixando de exaltar sua origem e cultura. Questionada se sente vontade de lançar um álbum mais voltado para o romantismo, a cantora revela que apesar de muitas pessoas pedirem, ela não se vê lançando nada do gênero, conforme explica: “Não é um desejo meu lançar uma ‘mixtape’ romântica, não é um pensamento”.

Alguns acham que é rap, mas a artista evita se prender a um só estilo musical, se permitindo experimentar diversos ritmos, e pretende lançar um álbum que mescla reggae e trap, batida que vem ganhando muito espaço no Brasil, o projeto está previsto para o próximo ano.

Resistência como palavra de ordem

Apesar de já ter um reconhecimento muito significativo e estar ocupando cada vez mais espaço dentro da mídia, o preconceito ainda é frequente na vida da cantora, que sabe que, como indígena, não pode descansar.

“Não podemos descansar, precisamos ser guerreiros sempre, desde o nascimento já herdamos essa luta. O racismo estrutural ocorre o tempo inteiro, quando você pensa que não, aquilo continua te atingindo. A gente não pode ficar só questionando quando isso vai passar, precisamos fazer algo para entrar nessa estrutura”, desabafa.

E é isso que Kaê vem fazendo com seu trabalho, adentrando em diversos meios não-indígenas em busca de direitos para seu povo, clamando por justiça, e descolonizando mentes, para que no futuro, os povos originários tenham paz e respeito, vivendo sem preconceito, no que restou de um país que nasceu do genocídio e ainda hoje se orgulha de destruir os donos dessa terra.

O guerreiro da floresta

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 Kunumi MC em cena no videoclipe da música “Xondaro Ka’aguy Reguá”. Foto: Arquivo Pessoal/Kunumi MC.

É em São Paulo/SP, no bairro rural de Parelheiros, que vive o jovem Werá Jeguaka Mirim, mais conhecido como Kunumi MC, da aldeia Krukutu. Nascido em uma família de escritores, sua mãe é contadora de histórias, e seu pai autor de livros. Junto com sua família, Kunumi lançou dois livros, o primeiro “Contos dos Kurumins Guarani” e o segundo “Kunumi Guarani”, foram publicados de forma independente, além do ‘’Literatura Nativa em Família’’ considerado o primeiro livro escrito por indígenas.

Com o dom da escrita nas veias, e inspirações como o grupo de rap indígena Brô MCs, Racionais, Projota e Emicida, Kunumi lançou seu primeiro álbum “Todo dia é dia de índio’’ em 2018, e já gravou com o rapper Criolo, que também é forte inspiração.

A característica mais marcante encontrada nas músicas do jovem rapper é o idioma, já que as rimas quase sempre são cantadas em Guarani, porém a tradução é disponibilizada em seus vídeos, o que ajuda a atrair mais público e expandir a luta indígena para todos. Sua sonoridade é forte, as batidas do rap ganham a companhia de instrumentos bem regionais e típicos do Brasil, resultando em músicas que soam tradicionais e futuristas ao mesmo tempo.

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Kunumi no centro da cidade de São Paulo, com o corpo pintado, usando cocar e adereços futuristas.  Foto: Arquivo Pessoal/Kunumi MC.

A sagrada arte

Kunumi leva a sério seu trabalho, e conta que sua música vai além da arte: “O rap que faço é uma luta, uma cerimônia. Meu rap é um rezo, pedindo e mandando força para os parentes, quando canto, aqueles que estão ouvindo recebem a força e a coragem dos deuses” revela. Sua crença é perceptível na história da música Xondaro Ka’aguy Reguá, que fala sobre um guerreiro nascido das águas, que levará os povos nativos para uma nova e melhor era, já que a realidade vem sendo cruel a mais de quinhentos anos com os povos originários e ainda hoje os massacra através de preconceitos.

Muito calmo e claro no que diz, Kunumi carrega uma sabedoria e paciência em sua voz que é quase palpável, mas o tom muda quando é para falar sobre um dos principais inimigos dos povos indígenas, o agronegócio: “O que os ruralistas, capitalistas e fazendeiros fazem quando se juntam, para nós não é progresso”, comenta o rapper, que é pai de um menino, preocupado com o futuro do pequeno, Kunumi explica o que é o progresso para seu povo: “Progresso é ter floresta, alimento, ter a natureza ao lado para poder viver com os nossos filhos”.

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Kunumi MC posando ao lado de sua esposa e filho em sua casa na aldeia Krukutu. Foto: Edu Garcia/R7.

A falta de vozes nativas na mídia é outro fator que incomoda o artista, Kunumi aponta o erro dos veículos de comunicação que não chamam indígenas para falar sobre a própria luta, optando por chamar antropólogos e indigenistas, o que acaba sufocando mais ainda a voz de seu povo.

“Infelizmente, a mídia só vai atrás de quem não mora na aldeia, ou de pessoas que trabalham com a causa. Mas são os indígenas que sabem a realidade, só nós sabemos falar a verdade do que acontece”, desabafa.

Se dividindo entre a vida de rapper e escritor, Kunumi já pensa nos próximos planos para sua carreira e revela as surpresas que pretende fazer em 2021: “Ano que vem irei renascer, surgirei com um novo visual, com um rap bem nativo, e com um visual da nossa cultura.

 

“Unidos por um ideal’’

“Mesmo vivendo na cidade, nos unimos por um ideal’’ a frase encontrada na música de Kaê Guajajara ‘’território ancestral’’, reflete bem a realidade da cantora e de Kunumi, juntamente com outros indígenas que, apesar do contato com o seu povo, vivem em contexto urbano, mas se unem e lutam pelos seus direitos, buscando respeito em qualquer lugar que se encontrem.

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estima-se que no Brasil existam cerca de oitocentos mil indígenas, representando cerca de 0,4% da população brasileira, e são divididos em povos, culturas e idiomas diferentes. Massificar e generalizar esses povos é errado e contribui para a ideia de que os indígenas foram extintos com a colonização. Contudo, o genocídio segue em curso, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 2019 foi o ano em que mais se matou indígenas, geralmente em conflitos com madeireiros, garimpeiros e fazendeiros.

Logo, o que Kaê e Kunumi querem através da arte é descolonizar mentes e espaços, denunciar violências e levar dignidade para seus parentes, sempre mantendo com orgulho suas culturas, e o mais importante, existir dentro de um país que já foi só deles.

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