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Conto: A noite em que eu renasci: as bruxas voltaram

Por Gabrielle Rodrigues
27/11/2020

Era tarde da noite e os espíritos estavam inquietos, sussurravam e sopravam palavras ansiosas. Ser uma vidente tinha um preço, sentir o mundo dos mortos enquanto está entre os vivos, era um privilegio, mas o fardo era pesado demais para uma pessoa suportar por tanto tempo, 100 anos era mais que o suficiente para testar a boa vontade de alguém e Lis estava ficando sem tempo. Lis era descente de grandes bruxas que escaparam do massacre de Salem, tinha pele branca como a neve, cabelos negros e olhos castanhos como as folhas no outono. 

Na janela da sala esperava aflita sempre olhando para o relógio, 22h, 23h, 23:30 e nada do sinal aparecer, pode parecer estranho, uma vidente que não sabia o próprio destino, mas os espíritos nunca lhe mostravam algo sobre seu destino. Faltando 15 minutos para o fim do prazo, Lis viu uma mulher atravessar a rua, sem se preocupar em olhar para onde ia, correndo como se estivesse sendo perseguida, ali ela soube que estava chegando ao fim da vida. A desconhecida bateu na porta como se suplicasse por ajuda, ao atender Lis se deparou com a mulher mais linda que já tinha visto, negra e com cachos grandes que iam até a cintura, um rosto delicado e olhos pretos como pedras de ônix, pareciam ter o poder de ler todos os pecados que tinham dentro de sua alma, enquanto a observava viu marcas nas mãos dela, cicatrizes de que vivem uma vida sofrida, de quem o mundo não teve o mais profundo zelo e isso deixou Lis zangada. 

- As vozes me mandaram aqui- disse a estranha em meio as lagrimas- me disseram que você é a única que pode me ajudar. – O coração da vidente se apertou, controlar os espíritos era algo que nunca soube dominar e não haveria tempo de explicar, afinal já era quase meia noite, era preciso realizar a transição. Elas eram meros instrumentos aqui na terra, ser escolhida era uma honra, mas o preço era alto. 

 Enquanto conferia as horas, Lis puxou a para dentro sem nem perguntar o seu nome, arrastando a até que chegassem a mesa da sala, essa que antes era receptiva e aconchegante, cheia de cores alegres e vibrantes, com contas e todos os tipos de decorações ciganas, agora era dominada pelas sombras, sombras que outrora foram mulher fortes, guerreiras, que não se deixaram ser esquecidas apenas por não estarem mais vivas. Sentadas frente a frente e com suas ancestrais acima, Lis começa a descrever sua jornada:

- Ouça atentamente, pois não temos muito tempo- o relógio marcava 23:55 – você possui o dom, a barreira entre os vivos e os mortos, agora é você. Nessas cartas de tarô, você vai encontrar as respostas que procura- diz a vidente colocando um baralho gasto sobre a mesa. 

-Eu não sei o que fazer com elas. 

- Escute as vozes, elas são seus guias, elas ensinaram tudo o que não tenho tempo de ensinar- 23:57 –eu fui fiel, servi ao meu propósito e agora devo repousar nos braços daquelas que vieram antes de mim, elas vieram me buscar e eu sei que você também pode senti-las. Como se esperassem a deixa, suas irmãs passaram a chama-las, pedindo que se tocassem e com um movimento lento e inseguro, a escolhida tocou o rosto de Lis que em um piscar de olhos sumiu, deixando tanta força que derrubou sua sucessora. 

Apoiando se na mesa, a escolhida se levantou, olhou para o cômodo que parecia o mesmo, olhou para as mãos, as cicatrizes continuavam ali, caminhou até o espelho e percebeu que a diferença estava ali, em seus olhos. Agora não era apenas ela, ela continha dentro de si tantas vidas que era impossível contar. Olhando para seu reflexo e com confiança afirmou:

-Sou Iara, formada por ninguém e escolhida pelo fogo. De agora em diante, não respondo mais aos homens ou aos meus torturadores. Sou livre, finalmente tenho uma família e por quem lutar, tenho uma vida e um dom para usar. Ai daquele que usa de injustiça para vencer nesta terra, caçarei eu mesma quem aprisionou e matou minha família, antes era caça, hoje sou caçadora. – E enquanto bradava juras de vingança aos injustiçados o relógio deu a sua última badalada, era meia noite. Junto aos seus ancestrais Lis cantava:

Hoje é o início de uma nova era,

É aqui que seremos vingadas, é aqui que seremos salvas

Pelas mãos de quem já sofreu, pelas mãos de quem já perdeu

A vitória nos aguarda, irmãs.

Avante, vamos todas a batalha.

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