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 Asfalto também é palco

As vivências e percepções de uma grafiteira, um músico e um malabarista que espalham arte pelas ruas

Por Lais Ribeiro
27/11/2020
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GIF: Arquivo pessoal/Halison Francesco

No período Paleolítico, o ser humano já sentia a necessidade de se expressar artisticamente nas rochas e paredes de cavernas. Na Antiguidade Clássica, músicos e cantores chamados aedos homéricos performavam lendas e tradições populares por toda a Grécia. Na Idade Média, trovadores e bobos da corte marcaram os feudos com muita poesia, cantigas, teatro e palhaçaria. O artista sempre existiu e sempre deu um jeito de expor sua arte em locais públicos para que um considerável número de pessoas pudesse se entreter e, claro, refletir. Deisy Siqueira, 28, grafiteira; Giovani Miranda, 37, violoncelista; e Halison Francesco, 24, malabarista, são alguns dos milhares de artistas de rua que seguem nos dias de hoje com a tradição de viver livre e viabilizar a arte para todos.

 

Ao cruzar as ruas Brigadeiro Tobias e XV de Novembro, no Centro de Sorocaba, pode ser que você ouça o agradável e sofisticado som ocasionado pela fricção das cerdas nas cordas de um violoncelo, tocado por Giovani. Ou pode ser que não. Giovani está há dois meses na cidade, mas seu espírito de itinerante o impulsiona a rodar vários lugares do país quando lhe convém. “Nasci em Mogi das Cruzes, fui criado em Rio Claro, mas vivo por aí. Nos dez anos que toco na rua, já viajei por seis estados brasileiros”.

Vídeo: Giovani Miranda se apresentando no Centro de Sorocaba

“Existe uma sacralização dos palcos, as pessoas adornam muito esse espaço, mas a verdade é que a arte pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer momento” – Giovani Miranda

Ele conta que sempre se interessou por instrumentos musicais, chegou a se formar em flauta transversal no Conservatório de Tatuí e até integrou bandas de bares, mas optou por trabalhar na rua mesmo. “Existe uma sacralização dos palcos, as pessoas adornam muito esse espaço, mas a verdade é que a arte pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer momento”.

 

Quem também decidiu largar uma vida de rotinas é Halison, mais conhecido como Fanho. Formado em filosofia pela Universidade de Sorocaba, ele deixou a cidade e o comodismo para trabalhar na rua. “Sentia que o ambiente que eu estava era pequeno demais. Tinha vontade de conhecer o que tem ‘lá fora’”. Fazendo uma analogia à Alegoria da Caverna, formulada pelo filósofo Platão, o artista afirma que se libertou da escuridão do mundo quando entrou em contato com quem vive da rua. “Grandes palhaços, artesãos, músicos, figuras da cena undergroud me ensinaram muito sobre psicologia, magia, ilusionismo, coisas da vida. Isso me fez sair da caverna e me abriu vários portais”. Há um ano e dois meses, Fanho abre seus portais. Até o momento dessa reportagem, ele se encontra em Curitiba, Paraná, mas seu nomadismo o leva para variados destinos, apenas com a companhia de sua mochila, onde guarda algumas roupas, cobertores e suas bolinhas – instrumentos de seu trabalho -, e com a companhia de sua gata de estimação, Lucy.

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Fanho e sua gata Lucy. Foto: Arquivo pessoal/Halison Francesco

Por outro lado, se a música de Giovani e os malabares de Fanho não são uma certeza em um determinado local, muitas artes de Deisy são. O muro de uma das vielas do bairro sorocabano Nova Esperança, por exemplo, não é só um simples muro desde quando a grafiteira, que estava de passagem por ali, externou seu comunicado feminista em forma de uma mão negra de punhos cerrados acompanhada dos dizeres “Respeita nois. Minha arte fala! Voz p/ todas mina silenciadas”. Apesar de sempre “rabiscar”, como ela mesma conta, Deisy começou a espalhar suas artes por Sorocaba e região no ano de 2017, quando teve contato com a técnica do grafitti em uma oficina. Desde então, sempre adotou uma mensagem de representatividade e empoderamento feminino em seus desenhos. “Gosto de pensar que uma mina se sente representada ou encorajada de alguma forma com a minha arte”. Sua assinatura, af.dsy, também carrega muito de sua identidade. “Dsy é uma abreviação do meu nome e o ‘af’ é uma abreviação de arte feminista, mas também uma expressão que a gente usa bastante quando não curte algo. Minha tag surgiu por conta disso, é arte para as minas e um ‘afffff’ para os manos”.

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Arte de Deisy no bairro Nova Esperança, Sorocaba. Foto: Arquivo pessoal/Deisy Siqueira

Segundo dados levantados pela empresa de turismo SPTuris e pelo Movimento Artistas na Rua, em 2012, os artistas de rua que se apresentam na cidade de São Paulo são predominantemente homens, correspondendo a 88% dessa população. Deisy afirma que o cenário da arte de rua para as mulheres realmente é um pouco limitado, mas que essa realidade está melhorando.  “As pessoas têm essa reação de surpresa, ‘nossa uma mulher grafitando!’. No começo senti uma falta de apoio das próprias mulheres também, mas isso vem se modificando”. Sobre a rua, ela diz ser um ambiente hostil, onde se sente vulnerável às vezes. “Homens, no geral, se acham no direito de mexer com mulheres em qualquer situação e no grafitti não é diferente. Já ouvi coisas como ‘vem fazer um grafitti em casa’ de uma forma que homens não recebem esse tipo de convite. Ainda assim, sinto que estou num lugar de grande privilégio comparado a outras mulheres, porque sou branca, solteira e sem filhos”.

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GIF: Arquivo pessoal/Deisy Siqueira

Esse tipo de machismo obviamente não é a realidade de Giovani e Fanho, mas os dois já presenciaram algumas violências. “Nunca sofri agressão física, mas verbal e psicológica, sim”, relata o malabarista, “existem pessoas que não nos olham, não nos deixam entrar em estabelecimentos, nos xingam”. Já Giovani afirma que aprendeu a lidar com isso. “Artista de rua está exposto demais, tanto para as coisas boas quanto para as ruins, mas procuro não dar muita atenção para os xingamentos”. Eles contam que, na maioria das vezes, experenciam mais situações de troca e de solidariedade. “A galera respeita muito os viajantes, ninguém mexe, ninguém tenta roubar. Só os noias que são fodas, mas é muito difícil alguém encrencar”, diz Fanho que, entretanto, ressalta a frequência da violência policial. “A polícia sim nos enquadra por nada, nos tira do lugar que estamos dormindo. Mas da polícia eu não espero menos, sua atitude é só o reflexo da mentalidade do nosso país como um todo. O Estado não é muito nosso amigo, apesar de não sermos os inimigos do Estado. Somos trabalhadores autônomos que dedicam a vida a transmitir arte e tirar sorrisos, despertar olhares, mostrar o diferente”.

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Foto: Arquivo pessoal/Halison Francesco

“Somos trabalhadores autônomos que dedicam a vida a transmitir arte e tirar sorrisos, despertar olhares, mostrar o diferente”

- Halison Francesco

Os três artistas afirmam que sentem um descaso por parte do Estado. “Penso que a classe artística nunca foi devidamente amparada, e estamos longe de ser. Basta ver a situação em que muitos artistas ficaram durante a pandemia de coronavírus, sem retorno financeiro, porque a demanda caiu bastante, e sem uma ajuda efetiva do Governo”, manifesta Deisy. As parcelas do auxílio aos artistas começaram a ser pagas pelo Governo apenas em setembro, seis meses após o início da pandemia, confirmando o caminho do descaso em que a cultura e os artistas estão sendo destinados. A extinção do Ministério da Cultura, feita ainda no início do atual governo, em 2019, foi apenas o indício do sucateamento do setor, que reverbera pelas gestões estaduais e municipais. Em Sorocaba, o projeto de Lei Orçamentária para 2021 prevê que a pasta de cultura receba uma das menores verbas do orçamento, ficando apenas com cerca de 0,3%. Deisy, ao contrário de Giovani e Fanho, não vive apenas da renda propiciada por sua arte, mas também do seu trabalho como professora. Já os outros dois, mesmo com a pandemia, não deixaram de trabalhar. “Não tem outro lugar a não ser a rua, então não deixei de trabalhar”, relata Giovani, que pensa que o artista não pode acompanhar o desalinho da política.

“Penso que a classe artística nunca foi devidamente amparada, e estamos longe de ser”

- Deisy Siqueira

Apesar do retorno financeiro poder ser incerto, a pesquisa realizada pela SPTuris e pelo Movimento Artistas da Rua também informa que, entre as principais motivações dos artistas, a opção de renda aparece em primeiro lugar. Fanho garante que seu trabalho gera dinheiro suficiente para viver muito bem. “O sistema não nos mostra esse lado autônomo. Comecei a ter um choque de realidade quando percebi que ganhava mais que os meus pais, que meu poder de compra era maior que o da metade da população brasileira”. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a renda mensal de 60% dos trabalhadores brasileiros foi, em 2018, de 928 reais, valor menor que um salário-mínimo. Fanho revela que ganha de 70 a 200 reais por dia, dependendo da cidade. “Interior paga melhor”. Nos seus primeiros dias de trabalho, quando ainda estava aprendendo a arte dos malabares, ele garantiu 300 reais, e assim diz ter “desbloqueado a mente” para uma nova realidade. “Trabalhador assalariado recebe pouco e só uma vez por mês, eu na rua faço muito mais. Saí das amarras do crédito e do débito, das armadilhas bancárias. Como não tenho despesa com aluguel, luz, água, acaba sobrando dinheiro para investir em qualidade de vida. É brisa!”.

 

Para Deisy essa liberdade financeira é um pouco mais difícil. “Trabalhos comerciais demandam do gosto do cliente e eu não me desprendo do meu viés ideológico em troca de um financeiro”. Giovani afirma que músicos de rua realmente conseguem pagar e fazer contas com o que recebem, e que o retorno financeiro é importante, mas acaba sendo secundário. “Artista gosta mesmo é de fazer acontecer”.

 

O violoncelista, sorrindo, diz que só vai se aposentar das ruas se a vida um dia o aposentar. Deisy diz que já conquistou mais do que almejava com sua arte e segue na missão de espalhar seus desenhos pelas cidades e encorajar mulheres com eles. Fanho não tem pretensão nenhuma de largar a vida de malabarista viajante, que pega carona, dorme na casa de amigos quando dá e, quando não dá, encara uma noite de sono embaixo de viadutos ou em terrenos abandonados até o sol nascer e um novo dia de alegrar pessoas com seus malabares começar. “Eu já era punk desde a adolescência, mas agora estou vivendo a vida underground de verdade, a contracultura. Estou fora dos livros e dentro do mundo real. Acho que não existe nada que eu ainda queira conquistar, eu já tenho tudo o que eu preciso: meu corpo para poder ir para qualquer lugar. O que vier vai ser muito doido. Quando eu era mais jovem, desejava ser livre, e hoje eu sou. Sou independente, guio minha vida, e só tenho a agradecer a arte de rua por me proporcionar essa liberdade”.

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